A história que se vai repetindo
De cada vez que um polícia é alvejado, ferido ou morto, a algazarra politiqueira inflamada pelos media, emerge e lá vêm as promessas de coletes, pistolas, penas pesadas, perseguição aos criminosos, etc, etc. Depois a coisa serena, pelo menos até à próxima desgraça, até à próxima vez que um par de polícias, sem coletes balísticos, em carros sem protecção, sem backup entra na cova do lobo e apanha forte e feio de quem sabe que não há ajuda por perto e que vai ter tempo mais do que suficiente para fugir.
Desta vez a história repetiu-se com o Sérgio, um amigo que ainda há tempos me contava as peripécias de ser polícia na Amadora. O Sérgio sempre sonhou ser polícia, suponho que porque acalentasse o sonho de ajudar os outros ou de mudar o mundo. Depressa foi percebendo que na maior parte das vezes é o mundo que nos muda a nós...
Pelas piores razões, o Sérgio – anónimo polícia na Amadora - hoje é capa de jornal. O sofrimento do Sérgio foi explorado até à medula numas fotos escarrapachadas na capa dum jornal que diariamente vende desgraças ao quilo e que se esforça por vender esta também, nem que para isso tenha de apimentar os acontecimentos com uns retoques ficcionais.
A desgraça quotidiana a que já ninguém liga teve desta vez para mim um rosto demasiado próximo e familiar, o rosto ensanguentado de um amigo.
Desta vez a história repetiu-se com o Sérgio, um amigo que ainda há tempos me contava as peripécias de ser polícia na Amadora. O Sérgio sempre sonhou ser polícia, suponho que porque acalentasse o sonho de ajudar os outros ou de mudar o mundo. Depressa foi percebendo que na maior parte das vezes é o mundo que nos muda a nós...
Pelas piores razões, o Sérgio – anónimo polícia na Amadora - hoje é capa de jornal. O sofrimento do Sérgio foi explorado até à medula numas fotos escarrapachadas na capa dum jornal que diariamente vende desgraças ao quilo e que se esforça por vender esta também, nem que para isso tenha de apimentar os acontecimentos com uns retoques ficcionais.
A desgraça quotidiana a que já ninguém liga teve desta vez para mim um rosto demasiado próximo e familiar, o rosto ensanguentado de um amigo.
Que recuperes depressa e bem.
Zé da Lela
2 Comments:
At terça-feira, julho 07, 2009 4:30:00 da tarde, entremares said…
O guarda Tulipa era, sem a menor dúvida, uma daquelas personagens que ficava na memória.
Bonacheirão, espremido dentro da farta apertada de policia, enorme e desajeitado, com olhos de criança e um sorriso que cativava até a mais empedernida das pedras.
Só o próprio nome já era “ meio caminho andado “ naquele conquistar imediato de corações que o guarda Tulipa conseguia, como que por magia, efectuar... sem magia, sem varinha mágica...
O guarda Tulipa, lá bem do alto do seu quase um metro e noventa, e um peso vergonhoso para se dizer em voz alta... era o encarregado de vigiar a entrada da escola primária do Pessegueiro, também conhecida pela escola nº 4 da Belavista, em Setúbal. Nada de especial, portanto.
E, no entanto, tudo de especial.
Toda a gente conhecia o guarda Tulipa; ou porque um dia alguém precisou de transporte para casa e o guarda Tulipa estava lá, a substituir o autocarro que avariou...ou porque a D. Eugénia ( que nunca mais se reformava, apesar de parecer mais velha que as múmias ) só a ele confiava as chaves do seu velho Volvo, que o guarda Tulipa conseguia arrumar impecávelmente num espaço tão pequeno que ninguém se atrevia a ali tentar estacionar... ou mais que não fosse, porque o guarda Tulipa conhecia todos os alunos pelo nome próprio, sabia onde moravam, conhecia-lhes os pais... e até já levara alguns para a esquadra, confiscando-lhes os cigarros semi desfeitos nos bolsos e os canivetes de gente adulta que eles gostavam de exibir no pátio da escola.
Portanto, quando um dia o guarda Tulipa não apareceu à hora do costume, para orientar o trânsito junto à entrada do portão, todos perceberam que algo de estranho sucedera. O guarda Tulipa nunca se atrasava.
Ao final da manhã... já a noticia se espalhara. O guarda Tulipa estava nos cuidados intensivos do hospital, a tentar vencer uma batalha desigual contra dois ataques cardíacos quase consecutivos, fruto de muitos e bons anos de peso a mais, gordura a mais... e exercício a menos.
A porta vai-vem do corredor do hospital deu de si e com um encontrão, um enfermeiro foi encostado à parede.
- Vocês não podem entrar aqui – ainda tentou protestar.
Ninguém lhe ligou.
A gang dos Gatos, como eles gostavam de se auto-intitular, não aceitava um não como resposta.
Ao todo, não passavam de meia dúzia de adolescentes, o mais velho talvez ainda com dezasseis ou dezassete anos, o mais novo pouco devia passar dos quinze. As roupas e o visual, copiado dos filmes de Hollywood, mais faziam lembrar os “motards” dos anos setenta que os novos gangs das ruas do século vinte e um. Não fosse pelos piercings e os blusões de capuz...
O grupo avançou ostensivamente pelo corredor, lançando miradas de desdém aos funcionários que, tacticamente, se encostaram à parede. No canto oposto, alguém se apercebeu da insólita situação e saiu a correr, a chamar a segurança do hospital.
- Em que quarto ?
- Vinte e três.
O provável líder do grupo, aquele que fizera a pergunta, ia espreitando as diversas enfermarias e quartos, até se deter diante no número pretendido. Deu um passo para confirmar que o número correspondia, espreitou ... e acenou com a cabeça.
- É aqui. – e acenando para a porta – vocês já sabem o que têm que fazer...
(continua...)
At terça-feira, julho 07, 2009 4:31:00 da tarde, entremares said…
(...continuação)
Os outros, aparentemente, sabiam. Colocaram-se junto da porta, barrando a passagem, e o líder do grupo avançou sozinho para o interior do quarto.
Ao fundo, soou, um pouco distante, uma sirene de alarme.
Kikas, o líder eleito dos Gatos, não passava de um adolescente, como tantos outros. Completaria dezoito anos no mês seguinte, era ainda menor. Continuava a residir com a mãe viúva e uma tia, mesmo depois de ter abandonado a escola e começado a fazer uns biscates, principalmente nas obras. Os Gatos eram um grupo de amigos, nem santos nem vândalos, à procura de uma identidade; saíam juntos, bebiam juntos, frequentavam o salão de máquinas da avenida Tody e, de vez em quando, lá se envolviam em brigas com os ciganos. O motivo era sempre o mesmo – a ideia de que o jardim da avenida não era suficientemente grande para todos, e como tal... vá de trocar uns sopapos de vez em quando, para manter a chama da rivalidade bem acesa.
É claro que às vezes havia excessos. O próprio Kikas já fora parar aquele mesmo hospital, com o gargalo de uma garrafa espetado numa perna.
Mas naquele momento, Kikas tinha outros pensamentos.
Sentado na beira da cama, olhava fixamente para o guarda Tulipa, com o rosto semi-encoberto por uma máscara de oxigénio, fios e eléctrodos a entrar e sair da roupa, ligados a mostradores coloridos, com muitos “beeps” e luzes de aviso.
O guarda Tulipa sempre gostara dele.
O tempo voou e as memórias voltaram a correr-lhe diante dos olhos. Já haviam passado três ou quatro anos... mas é como se tivesse sido no dia anterior. Uma briga, mais uma, dessa vez contra outro grupo da Belavista e um canivete a voar de encontro ao estômago, com insensatez e despropósito.
Tivera sorte.
O guarda Tulipa interpôs-se na trajectória e o metal rasgou-lhe as calças, arranhou-lhe a perna, salvando o Kikas de problemas bem maiores.
Nunca mais esquecera aquele episódio.
Olhou em seu redor. O resto do grupo continuava de vigia à porta. Puxou lentamente do boné vermelho e preto, perfurado por várias argolas metálicas – o seu estandarte de líder – e cuidadosamente, colocou-o sobre a cabeça do guarda Tulipa.
O aspecto final resultou caricato, aquela cabeça enorme, a máscara de oxigénio, o pequeno boné mal assente. Mas não importava.
- Kikas, vamos embora. A segurança vem aí... – gritou alguém do grupo
Voltou a olhar para a figura enorme do guarda Tulipa, imóvel e inconsciente. Era estranho como, de repente, alguém podia ficar assim tão vulnerável, tão indefeso...como se não passasse de uma criança.
- Kikas... vamos – voltou o outro a gritar, aflito.
- Vamos sim... – e virando-se para o interior do quarto, como se pudesse ser ouvido - ... aguenta-te Tulipa... aguenta-te...
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