Alcabrozes

Érêmes Muites, Apanhárêmes Pôque..., Olha!... Safárêmes!!!

sábado, outubro 23, 2004

TV Freak

Libertino era um homem feliz. Filho de um major austero e de uma dona de casa anónima, tinha tido uma infância normal. Foi educado à boa maneira militar, a obedecer aos seus superiores e a minimizar os que na hierarquia, tanto familiar como profissional, se situavam abaixo de si. Libertino casou tarde. Conheceu a mulher através de um anúncio e pode dizer-se que foi amor à segunda carta. Acabou o curso de técnico de contas já casado e com dois filhos. Viviam nos subúrbios de uma grande cidade, num oitavo andar cinzento, rodeado de tantos outros que era raro ver o céu. Depois de 33 anos de contabilidades, a trabalhar para outros, resolveu reformar-se. Libertino tinha um sonho: aparecer na TV, ser conhecido. Depois da reforma era cara habitual, como figurante, nos programas da manhã dos vários canais de televisão. Mas isto ainda não o preenchia. Queria mais. Depressa este sonho passou a obsessão e Libertino passava dia e noite a conjecturar um esquema para ver realizada a sua fixação. Farto desta situação andava a mulher. As discussões sucediam-se e um ambiente nada agradável pairava em casa. Numa chuvosa manhã de Outono Libertino sai da cama e dirige-se à casa de banho. Observa-se ao espelho durante alguns minutos e vê que está velho e que tinha chegado o momento de agir. Na noite anterior tinha dado à mulher uma dose de soníferos suficiente para adormecer duas ou três iguais a ela. Devagar, arrasta-a para a sala e ata-a pelos pés. A outra extremidade da corda é atada ao móvel que suportava a colecção de bugigangas obtidas durante uma vida, os livros comprados a metro para encher as prateleiras e que nunca foram folheados, as fotografias dos filhos e dos netos e as do seu casamento. Gentilmente, pega na mulher e pendura-a na janela, ficando de cabeça para baixo a uma altura considerável. Libertino sai da sala e dirige-se ao quarto. Enquanto veste o seu melhor fato ouve os gritos de pânico da mulher. Junto ao prédio vão-se acumulando transeuntes que olham atónitos à cena. As sirenes da polícia e bombeiros começam a fazer-se ouvir. Repórteres e cameramen começam a chegar, deitando para o ar as imagens do directo. Libertino liga o televisor e vê a mulher ainda como a deixou. De pé, da janela da sala, Libertino olha para o espectáculo que ele próprio criou. Sorri. Benze-se. E salta de cabeça do oitavo andar.
Libertino foi notícia de abertura de todos os telejornais nessa noite.

i am you